A fotografia na formação do Brasil.

Por Roberto Sungi

Texto escrito para a disciplina História da Comunicação - de 2ºsemestre do curso de
Jornalismo Universidade São Judas Tadeu

A história da imprensa no Brasil de meados do século 19 até meados do século 20, passa por transformações que refletem as mudanças pelas quais o Brasil estava passando: sai o Brasil colônia e começa a surgir o Brasil nação.
Dentre todos os setores que sofrem esta transformação durante o período de transição de um país mais rural para um país urbanizado e moderno está a imprensa nacional. Desde a criação do Correio Brasiliense até a chegada ao poder dos militares em 1964, passando pelos pequenos jornais que viram a luz do dia para serem esquecidos ao cair da noite, a imprensa  sempre esteve presente nas grandes mudanças que este país testemunhou.
Mas muitas das novas atividades da imprensa brasileira do período, sobretudo no inicio do século 20, acabam ofuscando uma que mesmo não diretamente ligada com o ofício do jornalista, desempenhou um papel importantíssimo no registro da formação de nossa história moderna, o oficio de fotógrafo.


O apoio de Dom Pedro II.

Foto de 1883 de Marc Ferrez que mostra D. Pedro de Alcântara,
D. Gastão e D. Luiz Maria em carroça puxada por carneiro.
Muito do que se transformara a imprensa no Brasil durante o 2º Reinado deve-se ao fato de, com a ascenção de D. Pedro II ao poder, não mais temos a censura da atividade jornalística no país. Entusiasta de novas descobertas nos vários campos do conhecimento e grande incentivador das artes, a sua contribuição pode ter ido muito além das esferas administrativas. Com a invenção da daguerreotipia em 1840 e da sua chegada ao Brasil ainda no mesmo ano, de imediato ela se tornou uma das maiores paixões de D. Pedro II que incentiva a atividade no Brasil através do reconhecimento público dos profissionais que abraçaram esta nova tecnologia, na criação de cargos que exercessem a atividade junto à corte e apreço aos muitos aventureiros que se dedicavam a espalhar os frutos de tais trabalhos.
Mas, mesmo com a saída da família imperial do Brasil, o oficio de fotógrafo continuou e ainda no inicio do século XX muitos profissionais de respeito estavam rodando o Brasil para documentar as enormes transformações que estavam ocorrendo em nossa sociedade.
Muitos nomes podem ser citados neste respeitável panteão de profissionais da imagem e bravos exploradores sociais, mas apenas alguns conquistaram com destaque a honra de figurar nos anais da história brasileira como referencia de trabalho fotográfico e vamos aqui destacar três: Marc Ferrez, Augusto Malta e Jean Mazon.
A contribuição dada por estes pioneiros da fotografia de reportagem no Brasil é reconhecida por todo o país e até mesmo no exterior, como é o caso de Marc Ferrez. Mas, além de simplesmente documentar um país em formação, estes três homens se tornaram fundamentais documentaristas fotográficos, sendo em muitos casos a maior referência do período, mesmo que de forma controversa.

Tecnologia: Técnica e Linguagem

Para entender o trabalho destes três fotógrafos é preciso esclarecer certos pontos a respeito das questões técnicas envolvidas nas suas atividades.
Tanto Marc Ferrez quanto Augusto Malta foram pioneiros não somente em aspectos técnicos ou de linguagem, mas representam uma quebra de paradigma do inicio da fotografia e que influênciou muito no que podemos chamar de fotojornalismo. As câmeras usadas por eles não eram equipamentos móveis, eram pesadas e o seu manuseio era complexo e trabalhoso. Daí a preferência da maioria dos fotógrafos da época em concentrarem as suas atividades nos estúdios, fazendo as vezes dos pintores do inicio do século XIX.
A ousadia e a coragem em sair do ambiente seguro e protegido dos estúdios é sem sombra de dúvida o maior mérito do dois pioneiros do fotodocumentário brasileiro. Arriscar-se por regiões e terras inóspitas, com um equipamento que não havia sido criado para tal, e experimentar novas maneiras de retratar o ambiente a sua volta, se desprendendo dos formatos imagéticos típicos da pintura, e se aproveitando da capacidade e velocidade de registro das câmeras fotográfica (embora as primeiras ainda demandassem significativo tempo de exposição para conseguir registrar as imagens nos negativos de vidro) representava possibilidades documentais muito amplas e interessantes, características que foram o principal motor a favor da popularização da fotografia ante as seculares pinturas.
Já ao analisarmos a obra de Jean Manzon, mais contemporãneo, o foco de trabalho muda radicalmente. Os avanços tecnológicos miniaturizam a câmera fotográfica, a Kodak cria as películas fotográficas de alta sensibilidade e qualidade, que resultam em uma portabilidade e agilidade que transforma a produção fotográfica moderna. Por conta destes e de outros fatores, a fotografia se beneficia enquanto linguagem, pois o fotógrafo pode experimentar mais, com enquadramentos de assunto muito mais ousados, com a instantâneidade da captura muito mais fluida, permitindo que momentos fugazes e únicos pudessem então ser registrados eternamente. Jean Manzon transporta todas estas ousadias para a produção fotojornalistica, valorizando o momento único e criando assim imagens que influenciam tanto pelo seu apelo estético, inédito nas terras tupiniquins, como pela ousadia e coragem em buscar e produzir novos e emocionantes olhares sobre o Brasil.
 
Marc Ferrez.
 
Construção da Estação da Luz, São Paulo Railway, Provincia de São Paulo, 1896,
fotografia de Marc Ferrez

Ele não foi o primeiro, mas com certeza foi o mais importante fotografo brasileiro do período. Marc Ferrez chegou a trabalhar para a Marinha Imperial, acompanhou expedições cientificas pelo Brasil a serviço do Império e foi um importantíssimo documentarista das mudanças no Brasil na transição do século 19 para o século 20. Suas imagens do Rio de Janeiro, muitas em estilo panorâmico, eram apreciadíssimas entre as classes mais abastadas da época e ele retratou intensamente a nova sociedade que estava surgindo.
Ele também ficou conhecido pelas visitas ás muitas obras de infra-estrutura que brotavam por todo o país, como a Estação da Luz em São Paulo; pelas fotografias das paisagens do Rio de Janeiro, seu sempre preferido assunto; pelas imagens das ferrovias e estradas que começavam a cortar o interior do país. Mas ele também fez valiosos retratos das pessoas da sociedade carioca na época, tanto em seu estúdio como ao ar livre, o que era sua preferência sempre.
Por não se restringir ao estúdio, seu retratos mostram uma face mais “real” do povo brasileiro, as transformações sociais advindas da abolição da escravatura há menos de uma década e da nova classe alta que colhia os frutos da exploração do café.
A crueza e a seriedade em muitos de seus retratos mostra um profundo contraste com a visão que os governantes do período queriam mostrar.
Muitas da obras e transformações retratadas nas fotografias de Ferrez são o resultado das tentativas de aproximar a sociedade brasileira da européia, sobretudo da francesa, sem se preocuparem com o mais básico, que seria o desenvolvimento da população.
Nesta pouco explorada faceta de Marc Ferrez podemos notar a criação de uma linguagem fotográfica mais livre e moderna, apesar de se assemelhar fortemente com a estética Naturalista, com imagens que retratam sem pudor ou disfarces o brasileiro do período.
Por exemplo, o retrato tirado nas ruas do Rio de Janeiro mostrando dois garotos que se ocupavam da atividade de venda de jornais, é o registro de uma das muitas profissões que estavam surgindo no Brasil. Os jornaleiros não só tornaram-se figuras comuns nas ruas das grandes cidades à época, como demonstram a que ponto havia chegado a liberdade de imprensa no país. Produzir, vender e consumir informação, por mais que houvesse muitas dificuldades, como o grande número de pessoas analfabetas, já era considerado um hábito cotidiano e aceito além de um boa amostra da liberdade de expressão que a sociedade brasileira experimentou na época.

Meninos vendedores de jornais -
Marc Ferrez Rio de Janeiro, 1899
No entanto, como mostra a imagem dos meninos vendedores de jornal ao lado, podemos ver que a vida adulta das pessoas começava bem cedo, e a austeridade de um país ainda em formação não deixava muito espaço para regalias e luxo.
Com uma população pobre ainda em grande número, o Brasil levaria muito tempo para conseguir romper as muitas dificuldades herdadas de seus tempos de Brasil colônia, marcas que nos perseguem ainda hoje.









Augusto Malta.


Morro de Santo Antônio
Augusto Malta - Rio de Janeiro 1914
Augusto Malta foi, durante um curto período de tempo, contemporâneo de Marc Ferrez. A até alguns historiadores que defendam que muito do que ele aprendeu se deva ao francês nascido no Brasil.
Fato é que muito da carreira de Augusto Malta se confunde com a trajetória de Marc Ferrez. Ambos faziam do Rio de Janeiro o principal personagem de suas fotos. Ambos preferiam fotografar ao ar livre, muitas vezes empreendendo longas caminhadas pelas ruas da capital da Republica Brasileira. Alías, ambos trabalharam para o governo, sendo fotógrafos oficiais em eventos e ações públicas.
Mas as semelhanças param por aí e ao analisarmos o trabalho de cada um, percebemos as suas diferenças, suas nuances e particularidades.
Augusto Malta foi fotógrafo oficial da prefeitura do Rio de Janeiro e por conta do cargo ele documentou com exclusivo acesso as diversas obras tocadas pela administração municipal, registrando a re-urbanização da cidade carioca, a construção de importantes vias publicas, como a criação da Avenida Central, hoje Avenida Rio Branco, a construção de importantes prédios públicos e a urbanização dos cortiços.
Mas foi com o surgimento das favelas que podemos destacar o trabalho documental de Augusto Malta.
Ocupação irregular da área do Morro da Providência em 1920
 A demolição dos antigos cortiços para dar lugar a avenidas e passeios públicos, a crescente valorização das regiões modernizadas e a pobreza que ainda imperava, fez com os moradores que ocupavam estes cortiços tivessem que se mudar, pois não tinham condições para comprar ou alugar casas nos mesmos locais em que moravam. Assim, muitos acabaram por se deslocar das regiões mais centrais para os morros mais distantes, lugares que até hoje ainda não recebem muitas atenções do Poder Público.
Interessante notar que, apesar da passagem do tempo, estas localidades continuam desamparadas. Visitas a favelas como a dos Morros da Concórdia e de Santo Antônio nos dias de hoje mostram paisagens incrivelmente parecidas com as retratadas por Malta, mostrando que não somente o secular descaso de políticos brasileiros como o prefeito da época, Francisco Pereira Passos, que como muitos, usa a imprensa para se promover e angariar apoio da sociedade, mostrando apenas o lado bonito de suas obras, mas vemos também que a miséria e pobreza continuam com a mesma face, sempre muito bem separada e escondida dos cidadãos ricos e barões cafeeiros.


Jean Manzon
 
O presidente Juscelino Kubitschek e Lúcio Costa na futura Brasília


Pracinhas lutam boxe,
Jean Manzon - 
1944
Francês que chega ao Brasil durante a 2º Grande Guerra, trabalhou no DIP como diretor de fotografia, atuou como repórter fotográfico da extinta revista O CRUZEIRO durante o período dos anos de 1940 e 1950 e logo em seguida entra no IPES (Instituto de Pesquisas Especiais para a Sociedade) produzindo documentários ufanistas para o governo de JK. Foi prolífico em retratar a sociedade brasileira da época, levando muito de sua experiência adquirida nos anos em que trabalhou em uma das principais revistas francesas, a MATCH. Suas imagens eram minuciosamente construídas, com ângulos até então nunca experimentados na imprensa brasileira e trouxeram uma nova forma de fotojornalismo, mais dinâmico e sem a seriedade e rigor das produções do período, embora o seu compromisso com a verdade dos fatos fosse, quando muito, discutível.

Colhedora de Cana-de-Açúcar,
Jean Manzon - 1950
Esta busca pelo novo e diferente traz, paradoxalmente, uma linguagem fotográfica mais conectada com a realidade. Ao retratar um fato ou evento de forma a valorizar mais o clima ou as sensações do assunto, sem um compromisso fiel com a informação a ser veiculada (em diversas ocasiões, Jean Manzon não hesitava em criar personagens para ilustrar fatos que ele perdera ou não conseguia fotos boas) Jean Manzon recria o clima e a atmosfera da ocasião, ressaltando o contexto.

Mas, muito da carreira de Jean Manzon está associada a polêmicas. Em seus anos no DIP e no IPES, teve muito contato com autoridades políticas brasileiras, conquistando o apreço de figuras como Getúlio Vargas, que adorava os seus retratos feitos pelo francês, e de Juscelino Kubitcheck, que o convidou para registrar a construção de Brasília em diversos documentários em filme.

Mas a grande importância do trabalho de Jean Manzon está em seus anos como repórter fotográfico do CRUZEIRO. A dupla formada com David Nasser produziu memoráveis reportagens, e mudou radicalmente a produção jornalística na imprensa nacional.

Jjuscelino Kubitschek
Jean Manzon 1950
Retratou o Brasil para o Brasil e mostrou com exclusividade noticias como o primeiro contato com os índios xavantes, a intimidade de presidentes como Juscelino Kubitchek (a liberdade era tanta que o fotografou dormindo durante uma viagem á futura capital brasileira, Brasília). Também criou reportagens polêmicas, como uma em que pretendi mostrar a diferença entre um chinês e um japonês, ou quando mentiu ser de uma publicação americana para conseguir conversar com Chico Xavier.


Crianças, 1945-Minas Gerais.
Nestes anos como fotógrafo do CRUZEIRO, descortinou o nosso país como poucos, e suas imagens são sempre lembradas e pesquisadas pelas novas gerações de fotojornalistas, como uma demonstração da audácia e coragem ante o desconhecido.

Um destaque para a linguagem fotográfica de Jean Manzon pode ser dado para suas series de retratos do Brasil. Garimpeiros, cortadores de cana, pescadores, soldados e donas de casa, todos eram objeto de atenção das lentes de Manzon. Sua capacidade de se intrometer (“Um coleguinha capaz e petulante”, nas palavras de Millôr Fernandes) o ajudou a construir a imagem que temos hoje do Brasil. E embora sempre rodeado de polêmicas, ele foi o mais corajoso de todos, pois como poucos, mostrou ao brasileiro a diferença entre o que éramos e o que podíamos ser.





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